CRÔNICA - ESTUDANDO O GÊNERO
Mário
Prata
Sempre que eu escrevo aqui sobre futebol, tem umas
senhoras que reclamam.
Acontece que, em primeiro lugar, eu adoro futebol. Em
segundo, minha cara, se o Roberto DaMatta escreveu, se o Verissimo escreveu, se
o Ubaldo escreveu e o pau não comeu, por que não eu? Viram?, estou até rimando.
É que eu tenho uma teoria sobre o nosso futebol paraguaio.
Não sou homem de muitas teorias, sempre fui um prático. Mas há 30 anos,
exatamente desde a Copa de 70, venho acompanhando a queda do nosso futebol. De
lá para cá - exceção da seleção de 82 -, é sempre um sufoco assistir aos jogos
da nossa seleção. Até contra o Panamá, país onde passa um canal no meio do
campo, a gente ficou na agonia durante exatamente 61 minutos.
A minha teoria é a seguinte. Até 70, não havia
substituições no jogo.
Machucou, saía e continuava com dez. Ali começou o
imbróglio. Com as três substituições, veio o banco de reservas. E com o banco,
ele, o técnico. Deus.
Era aqui que eu queria chegar. Depois deixaram o Deus
ficar de pé. E gritar.
Gritar palavrão, dar ordens, xingar, ameaçar, mandar fazer
isso ou aquilo.
Sendo dono da coisa, da cabeça e do talento dos nossos
meninos.
Ou seja, o técnico quer que o jogador faça o que ele quer
e não o que o jogador sabe. Fico a imaginar um técnico gritando com o
Garrincha, que driblava para trás. A pedir para o Pelé não entrar pela direita.
Teve um até que chegou a dizer que o Pelé estava ficando cego. Céus.
O jogador brasileiro tem aquele nível cultural que você
conhece. É tímido, envergonhado, semi-analfabeto. Hoje, erram uma jogada e
olham para o banco.
Já reparou? E, quando acertam, vão lá beijar o dono deles,
o pai deles, o homem que pensa por eles.
A minha idéia é acabar com esse negócio de substituição e
deixar os onze craques lá dentro. E eles se virarem entre eles. Eles perceberem
com o talento que o verdadeiro Deus lhes deu e se ajeitarem. Vai voltar a
criatividade e a ginga dos moleques canarinhos.
Eu não sei qual é a sua profissão. Mas imagine você
trabalhando e um sujeito (que se julga superior a você, mas nunca fez aquilo)
martelando no seu ouvido.
Fico imaginando eu aqui, escrevendo e um sujeito gritando ao meu lado:
- Olha a vírgula, porra! Olha a vírgula!!!
Sem saber onde é que eu ia terminar a frase.
- O parágrafo tá ficando grande! Corta! Corta!
- Tá usando muita reticência... Assim o leitor não
agüenta. Olha o trema do agüenta!!!
- Crase, não! Você não sabe colocar crase. Não inventa!!!
Escreva o feijão-com-arroz.
E quando eu dou uma paradinha para pensar, lá vem ele de
novo:
- Pára de valorizar a palavra. Vai logo para a linha final
e cruza uma exclamação.
Eu olho para ele e já não sei o que era mesmo que eu
pretendia com a linha de cima.
Mas ele, ali na beira da mesa, gritando comigo. Dizendo
palavrões que eu não posso colocar aqui. Eu começo a pensar numa frase bonita
para correr até ele e dar um beijo. Ajeito o título.
- Isso é título que se apresente, rapaz!!! Muda o título.
Mude o tipo. Use corrier, arial não está com nada. Olha o espaço! Olha o
espaço, porra! Assim não vai dar. Olha o tempo. O pessoal da redação está
ligando. Pensa na ilustração.
Já estou pensando em ser substituído. Estou cansado.
- Vamos cara, falta só um parágrafo. Vai mais para a
esquerda, o texto tá meio reacionário. Olha a revisão. Jeito não é com g!!!
Cobre o espaço!
Já pensou? Os jogadores devem ficar lá dentro com a mesma
aflição. Não existe mais jogador. Existe aquele homem ali, que entende de tudo,
que se veste bonito, fala bonito geralmente - é um tremendo de um mau-caráter e
seu vocabulário se resume a palavrões e chavões.
Tirem aquele homem de dentro do campo, pelo amor de Deus,
pelo amor e talento aos nossos craques. Ninguém trabalha sob pressão, com
palpites.
Bem fazia o Feola, campeão de 58, que dormia nos treinos e
deixava a garotada trabalhar com prazer.
(Disponível em: http://www.estadao.com.br. Acesso em: 28/05/2010)
EXPLORANDO O GÊNERO
1.
O cronista recebe críticas de algumas senhoras
leitoras do jornal sobre o fato de, em suas crônicas, ele abordar o tema
futebol. Cite os argumentos utilizados por Mário Prata para continuar
escrevendo sobre o tema futebol.
2.
O título “Futebol, teoria e prática” remete a
uma questão bastante comum: a relação entre teoria e prática. De acordo com a
abordagem do cronista, como essa relação acontece no universo futebolístico e
da escrita?
3.
Segundo Antonio Gil Neto, “um trunfo da
crônica é que nela os eventos aparentemente banais, corriqueiros ganham outra
‘dimensão’ graças ao olhar subjetivo e cuidadoso do autor. E o leitor acompanha
o acontecimento, como uma testemunha guiada por esse olhar cronista que lhe
configura uma versão única e singular.”
a.
Que
fato corriqueiro motivou o cronista a escrever seu texto?
b.
A abordagem subjetiva desse fato
aparentemente banal provoca, intencionalmente, uma reflexão crítica sobre as
relações de poder no convívio social. Comente.
c.
Na relação entre o técnico e o jogador
de futebol, que atitudes do jogador reafirmam essa relação de poder?
d.
Para se referir ao técnico e aos
jogadores, o autor utiliza palavras que funcionam como mecanismos de coesão por
substituição, mas que, semanticamente, também ressaltam o autoritarismo, a
superioridade, o domínio daquele sobre esses. Identifique esses elementos
coesivos.
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